Boeing 2707 SST: como seria o "Concorde" americano?
Mais uma de "Um pouco de historia"
No início da década de 1960, o mundo mal tinha entrado na era do jato.
Os Boeing 707 e Douglas DC-8 eram ainda quase novidade no mercado, e
estavam revolucionando a aviação, pois praticamente duplicaram a
velocidade dos voos comerciais quando foram introduzidos.
Mas uma nova revolução estava em curso. O próximo passo seria introduzir
aviões supersônicos em serviço. Na aviação militar, os supersônicos já
voavam há anos, e parecia mera questão de tempo para que os então
novíssimos 707 e DC-8 fossem relegados ao transporte de carga, enquanto
os passageiros cruzariam os céus duas vezes acima da velocidade do som.
A Boeing estudava o projeto de uma
aeronave comercial supersônica desde 1952, e por volta de 1958,
estabeleceu um comitê de engenharia que propôs uma grande variedade de
configurações para o denominado Projeto 733. A configuração de asas em
delta era a favorita, mas até mesmo uma asa de geometria variável, cujo
enflechamento variava com a velocidade foi proposta.
Por volta de 1960, um milhão de
dólares já tinham sido investidos em tal projeto.Entretanto, os estudos e
pesquisas caminhavam calmamente, e não parecia haver intenção de
produzir um grande supersônico comercial em futuro próximo.
Tudo isso mudou subitamente em 1962,
quando se tornou evidente que a empresa britânica Bristol Aeroplane
Company e a francesa Sud Aviation estavam formando um consórcio
binacional para produzir o primeiro supersônico comercial. Em novembro
desse ano, o consórcio anunciou que construiria uma aeronave denominada
Concorde. Os americanos ficaram em pânico, pois todo mundo achava que,
nas décadas seguintes, os aviões de passageiros seriam todos
supersônicos, e os europeus estavam claramente disparando na frente.
Reagindo ao projeto europeu, em 5
de junho de 1963, o Presidente americano John F. Kennedy anunciou a
criação do programa National Supersonic Transport, no qual o governo
iria subsidiar em até 75 por cento os custos de desenvolvimento de uma
aeronave supersônica comercial capaz de enfrentar a "ameaça" do
Concorde.
Na verdade, os americanos eram
mais ousados, e não pretendiam simplesmente oferecer um simples
concorrente do Concorde: o supersônico americano deveria levar 250
passageiros , mais que o dobro da capacidade do Concorde, e voar entre
Mach 2,5 e Mach 3, com um alcance de mais de 7 mil Km.
Os projetistas do Concorde limitaram
deliberadamente a velocidade da aeronave a Mach 2,2, pois essa era a
velocidade máxima suportada por uma aeronave construída em ligas de
alumínio. Em velocidades supersônicas mais altas, o aquecimento
dinâmico, resultante da compressibilidade e do atrito com o ar, poderia
comprometer a resistência estrutural do alumínio, e construir a aeronave
em ligas de aço inoxidável ou titânio, mesmo que tecnicamente viável,
seria proibitivamente caro.
Os americanos, no entanto,
tinham uma vantagem técnica nesse assunto. A North Americam tinha
produzido um protótipo de bombardeiro capaz de atingir Mach 3, o XB-70
Valkyre, e que tinha o alcance de 7 mil Km voando a 77 mil pés. Esse
avião utilizou-se largamente de ligas de aço inoxidável em sua
construção, para superar as limitações das ligas de alumínio, e o mesmo
poderia ser feito no novo supersônico comercial americano.
Ainda que o projeto XB-70
tivesse sido cancelado prematuramente devido ao desenvolvimento de
eficientes sistemas de mísseis terra-ar, seus dois protótipos foram
mantidos em serviço, como banco de testes para o desenvolvimento de
aeronaves civis de alta velocidade, pela NASA. O Concorde parecia estar
muito próximo de ser superado antes sequer que fizesse seu primeiro voo.
Na concorrência para o projeto
National Supersonic Transport. participaram os fabricantes de aeronaves
North American, Lockheed e Boeing, e os fabricantes de motores
Curtiss-Wright, Pratt & Whitney e General Eletric. Os projetos
preliminares foram apresentados ao FAA - Federal Aviation
Administration, em 15 de janeiro de 1964. O projeto da North American
consistia praticamente em um XB-70 ampliado e com fuselagem mais larga, e
o da Lockheed em uma aeronave bastante similar ao Concorde, mas de
maior tamanho. A North American e a Curtiss-Wright acabaram eliminadas
da concorrência antes da apresentação final dos projetos.
O projeto da Boeing, o Model 733-197,
também denominado Model 2707, apresentava asas de geometria variável.
Quatro motores turbojatos com pós-combustores seriam montados abaixo das
asas em naceles individuais. A designação 2707 ficou mais conhecida
pelo público, embora a Boeing continuasse a se referir ao modelo como
Model 733.
Com a eliminação da
Curtiss-Wright, os fabricantes de células foram instruídos a selecionar
um dos dois motores restantes na competição, e a Boeing aproveitou para
dar um upgrade no seu projeto, pois a fuselagem foi ampliada e os
motores foram reposicionados logo abaixo dos estabilizadores. As asas
ficavam em tal posição que, em alta velocidade ,praticamente se juntavam
aos estabilizadores horizontais, formando um desenho em delta. Tal
modificação criou o modelo 733-290. A FAA solicitou às empresas concorrentes que refinassem seus projetos
para a seleção final, que aconteceu em setembro de 1966, e a Boeing
apresentou nessa seleção um novo modelo, denominado 733-390, dessa vez
com capacidade para 300 passageiros. A Boeing foi finalmente declarada
vencedora da concorrência, em 31 de dezembro de 1966. Os motores
selecionados foram os enormes General Eletric GE4/J5 (foto acima), com
eixo único e pós combustores. Foram os mais poderosos motores do seu
tempo, capazes de fornecer 50 mil libras-força de empuxo sem
pós-combustão e 65 mil libras-força, com pós-combustão.
O Model 733-390 era um projeto muito
interessante e inovador. Seria uma aeronave wide-body, de dois
corredores, com poltronas dispostas em 7 fileiras em configuração 2-3-2,
consideravelmente mais larga do que qualquer avião então em serviço, já
que o Boeing 747 ainda não estava voando.
O avião teria refinamentos que
somente seriam encontrados nos aviões décadas mais tarde. Os 247
passageiros da classe turística teriam telas de vídeo na razão de uma
para cada seis assentos, logo abaixo dos bins, e os 30 passageiros da
primeira classe seriam contemplados com uma tela de vídeo para cada dois
assentos. Entretanto, como o avião voaria acima do FL 700, as janelas
eram muito pequenas, apenas 6 polegadas, embora o painel interno tivesse
12 polegadas para dar a ilusão de maior tamanho.
A Boeing previa que, assim que o
projeto fosse liberado, que poderia começar a construir os protótipos já
no começo de 1967, e que o primeiro voo poderia ocorrer no início de
1970. A certificação e entrada em serviço estavam previstos para meados
de 1974.
Tão logo os engenheiros
começaram os trabalhos, apareceram os primeiros problemas. O sistema de
geometria variável logo demonstrou ter peso inaceitável, e em outubro de
1968 a Boeing foi forçada a eliminar o sistema em favor de uma asa fixa
em delta. A capacidade de passageiros foi reduzida para 234 assentos. O
modelo resultante dessas alterações foi denominado Boeing 2707-300. A
construção de um novo mock-up de madeira em escala integral e de dois
protótipos foi iniciada em setembro de 1969. O projeto já estava com
dois anos de atraso, e o Concorde franco-britânico, a essa altura, já
tinha feito seu primeiro voo com sucesso, em 2 de março do mesmo ano.
O projeto do 2707 não ia bem. A Boeing
fez um filme promocional, enfatizando que em pouco tempo o custo de
produção seria absorvido, e que os novos aviões comerciais que então
entraram em serviço, como o McDonnell-Douglas DC-10 e o 747, da própria
Boeing, seria apenas modelos transitórios, antes da grande era
supersônica.
Na verdade, os supersônicos
sofreram grande oposição, especialmente por parte dos ambientalistas. O
maior problema era o estrondo sônico, que resulta da onda de choque
produzida pela aeronave quando a mesma ultrapassa a velocidade do som.
Um "Manual do Boom Sônico", escrito por William Shurcliff, afirmava que
um único vôo “deixaria uma zona de estrondo de 50 milhas de largura por
2.000 milhas de comprimento”, que causariam sérios problemas para a
população e meio ambiente na área sobrevoada. Outros ambientalistas
afirmavam que os óxidos de nitrogênio emitidos pelos motores em grande
altitude poderiam afetar a camada de ozônio da estratosfera. Moradores
das imediações dos aeroportos se juntaram aos opositores do projeto,
pois motores com pós-combustão são realmente ensurdecedores na
decolagem.
Testes de voo supersônico sobre
regiões habitadas dos Estados Unidos, com as aeronaves de pesquisa
XB-70, confirmaram problemas para as áreas sobrevoadas. A cidade de
Oklahoma City foi sobrevoada a grande altitude por um XB-70, em 1965, e
nada menos que 9594 queixas foram registrada pelas autoridades contra o
ruído produzido pelo avião.
Logo, voos supersônicos foram
proibidos sobre todo o território dos Estados Unidos. Normas de
limitação de ruído de aeronaves foram publicadas, o que praticamente
inviabilizava a operação do Boeing SST em aeroportos americanos. O
projeto parecia cada vez mais fadado ao fracasso.
No Congresso dos Estados Unidos,
os parlamentares de esquerda também se opunham a projetos que
subsidiavam empreitadas privadas com dinheio público. O projeto do SST
precisava de mais dinheiro, mas as fontes estavam secando.
Finalmente, em 1971, embora o
encerramento do projeto pudesse causar a demissão de mais de 13 mil
empregados envolvidos diretamente no projeto, o Congresso votou contra
novos subsídios necessários para a conclusão do SST, ainda que o governo
Nixon apoiasse fortemente o programa. A votação foi apertada, 215 votos
contra 204 a favor do SST. O SST americano estava morto.
A essa altura, 115 aeronaves SST
já haviam sido encomendadas por 25 empresas aéreas, contra 74
aeronaves, por 16 empresas, que encomendaram o Concorde. A Boeing acabou
demitindo, por conta do encerramento do projeto SST, outros contratos
governamentais e redução da demanda comercial, mais de 60 mil
trabalhadores. O SST ficou conhecido como "o avião que quase comeu
Seattle".
Os dois protótipos em construção
jamais foram terminados. O Boeing 2707 SST acabou virando, de certa
forma, um tabu dentro da empresa. O Museu da Boeing possui uma seção de
aeronaves supersônicas, mas a grande estrela do museu é justamente um
Concorde, que está muito perto do edifício onde foi construído o mock-up
do B2707 SST, que seria seu grande concorrente. No Museu, quase nada
existe sobre o SST.
De certa forma, o fracasso do
Boeing 2707 SST veio em boa hora. As aeronaves supersônicas de
passageiros jamais foram viáveis economicamente. Os árabes, durante a
Guerra do Yon Kippur, em 1973, impuseram o "Choque do Petróleo", evento
que, por si só, determinaria a morte de qualquer sonho de voos
supersônicos de passageiros pelo mundo afora. O jato russo Tupolev
Tu-144 teve vida curta em serviço, e o Concorde, subsidiado pelos
governos da França e do Reino Unido, permaneceu em serviço de 1976 a
2003, num serviço altamente restrito e de elite, e mais como um tributo à
capacidade técnica européia do que como serviço comercial
economicamente viável.
O projeto do SST deixou um
importante legado técnico à Boeing e à aviação como um todo,
especialmente suas asas de perfil supercrítico, hoje usadas amplamente
na aviação civil. Seattle sobreviveu ao SST, pois a Boeing logo se
recuperou, na esteira do sucesso dos Boeing 747 e 737, dois dos maiores
sucessos da aviação comercial na história. O Concorde também deixou seu
legado, pois do projeto binacional nasceu o grupo Airbus, hoje o
principal concorrente da Boeing.
Um dos mock-ups de madeira do 2707
ficou exposto em Kissimmee, na Flórida, entre 1973 a 1981. Atualmente
está em exposição no museu da aviação Hiller, em San Carlos,
Califórnia. Os protótipos inacabados viraram sucata.
O voo comercial supersônico hoje
parece muito distante, devido às implicações ambientais e ao seu
próprio custo, hoje quase proibitivo. O Boeing 2707 SST seria uma
aeronave fascinante, e é realmente uma pena que nunca tenha voado,
sequer como protótipo. O Concorde, quando deixou de voar definitivamente
em 2003, deixou no ar uma impressão de retrocesso tecnológico, pois há
poucos anos atrás era possível sair de Londres no começo da noite para
jantar em Nova York, e hoje isso não passa de um sonho.
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